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Artigo Original

Perfil epidemiológico de pacientes queimados no Rio de Janeiro

Epidemiological profile of burn patients in Rio de Janeiro

Matheus de Albuquerque Santos1; Irene Daher Barra2; Savio Dornelas Breder2; Kerly Abrão Badaró2; Clara Pontes2; Daniel Gouveia Leal1; Sergio Domingos Bocardo1; Silvio Rodrigo Arevalos Davalos1

DOI: 10.5935/2595-170X.20250005

RESUMO

OBJETIVO: As queimaduras são uma causa significativa de morbidade e mortalidade globalmente. Este estudo analisa o perfil epidemiológico das internações e mortalidade por queimaduras no estado do Rio de Janeiro de 2013 a 2023, visando entender os encargos das esferas da saúde e socioeconômicas para assim fornecer substrato para novas políticas de saúde.
MÉTODO: Estudo retrospectivo descritivo usando dados do DATASUS. Analisaram-se variáveis como faixa etária, sexo, ano e raça das internações e mortalidade por queimaduras.
RESULTADOS: Das 17.645 internações, 7,35% resultaram em óbito. Houve aumento acentuado das internações em 2021, com padrões semelhantes nos óbitos. Pardos e pretos representaram a maioria das internações e óbitos, com significância estatística na associação raça-óbito (p<0,001). Homens foram mais afetados por internações, enquanto a mortalidade não apresentou diferenças significativas por sexo. A faixa etária <10 anos teve mais internações, mas os óbitos foram mais comuns em idosos (> 60 anos).
CONCLUSÕES: Este estudo ressalta a gravidade e relevância das queimaduras no cenário de saúde pública no Rio de Janeiro. Assim, destaca a necessidade de intervenções sensíveis aos determinantes sociais da saúde na tentativa de se reduzirem as disparidades e, dessa forma, melhorar os resultados de saúde.

Palavras-chave: Saúde das Minorias Étnicas. Queimaduras. Determinantes Sociais da Saúde. Epidemiologia.

ABSTRACT

OBJECTIVE: Burns are a significant cause of morbidity and mortality globally. This study analyzes the epidemiological profile of hospitalizations and mortality due to burns in Rio de Janeiro state from 2013 to 2023, aiming to understand the health, social, and economic burdens and provide a basis for health policies.
METHODS: Descriptive retrospective study using DATASUS data. Variables such as age group, sex, year, and race were analyzed for hospitalizations and mortality due to burns.
RESULTS: Of the 17,645 hospitalizations, 7.35% resulted in death. There was a sharp increase in hospitalizations in 2021, with similar patterns in deaths. Brown and black individuals represented the majority of hospitalizations and deaths, with statistical significance in the race-death association (p<0.001). Men were more affected by hospitalizations, while mortality did not show significant differences by sex. The <10 years age group had more hospitalizations, but deaths were more common in the elderly (>60 years).
CONCLUSIONS: This study emphasizes the relevance of burns as a public health problem in Rio de Janeiro. It highlights an underlying need of significant change to social determinants of health to reduce disparities and improve health outcomes.

INTRODUÇÃO


As queimaduras representam um importante causa de morbidade e mortalidade em todo o mundo, afetando indivíduos de todas as idades e grupos socioeconômicos. Parte disso se deve a sua alta incidência e impactos físicos, psicossociais e financeiros, potencialmente devastadores sobre indivíduos, famílias e comunidades1,2.


Embora haja indícios de que a incidência global de queimaduras está em progressiva regressão, particularmente em países desenvolvidos, tem havido pouca redução nas taxas de mortalidade fora de regiões com recursos multidisciplinares suficientes para o tratamento de queimaduras. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que 180 mil mortes ocorrem por ano em decorrência de queimaduras. Ademais, é possível observar uma correlação entre classe socioeconômica e tal nosologia, ou seja, a sua incidência parece variar de acordo com a situação financeira e social na qual o indivíduo afetado está inserido. Variáveis como gênero e idade também apresentam relevância nesse contexto3-5.


O estado do Rio de Janeiro, com sua densidade populacional e complexidade social, não está isento dessa realidade. Este estudo tem como objetivo analisar o perfil clínico-epidemiológico das internações por queimaduras na região durante o período de 2013 a 2023, assim como sua mortalidade, fornecendo um perfil epidemiológico que nos permite refletir sobre os verdadeiros encargos da saúde e socioeconômicos que englobam tal nosologia. Tais levantamentos são importantes como base para o planejamento da distribuição de recursos e de intervenções públicas no que abrangem as  políticas de saúde, fornecendo matéria-prima para melhorias nas estratégias de prevenção e tratamento.


MÉTODO


Trata-se de um estudo epidemiológico de análise descritiva retrospectiva, realizado através da coleta de dados anuais disponibilizados pelo TABNET do Departamento de Informação e Informática do SUS (DATASUS). Foram analisadas as seguintes variáveis de internações: faixa etária, sexo, ano e raça, assim como a mortalidade detalhada em cada uma delas. A partir dos dados obtidos no DATASUS, foi realizada uma análise descritiva retrospectiva simples e os achados mais significativos apresentados em gráficos e tabelas. Para as análises estatísticas, foi utilizado o teste de Qui-Quadrado.


RESULTADOS


Foram identificados um total de 17.645 casos de internações por queimaduras no período estudado. Desses, 1297 (7,35%) tiveram como desfecho o óbito dos doentes (Tabela 1).


 



 


Com relação às internações ao longo dos anos, nota-se um aumento vertiginoso das internações a partir do ano de 2021, com uma tendência do dobro de casos em relação aos anos anteriores (Gráfico 1).


 



 


Quanto aos óbitos, percebe-se um vultoso aumento no ano de 2021, com um subsequente retorno a valores semelhantes aos previamente apresentados.


Com relação à raça, embora haja uma grande subnotificação (42,7%), os dados mostram que 47,29% das internações se deram entre indivíduos negros e pardos, enquanto brancos e amarelos somaram juntos 10,04%. Quanto aos óbitos no período, houve uma subnotificação de cerca de 39,4%, com pardos e pretos representando 54,02% dos óbitos, contra 6,47% de brancos e amarelos (Tabelas 2 e 3). Os resultados do teste do Qui-Quadrado indicaram uma associação estatisticamente significativa entre a raça e o número de óbitos por queimadura no estado do Rio de Janeiro durante o período de 2013 a 2023 (p<0,001).


 



 


 



 


O sexo mais acometido por queimaduras que geram internações foi o masculino, representando 63,08%, com relevância estatística (p<0,05). De forma análoga, em análise quantitativa, os óbitos nesse sexo também representaram a maioria (59,9%) (Tabelas 4 e 5).


 



 


 



 


A distribuição em faixas etárias revelou um maior número internações na faixa etária menor de 10 anos quando comparada a todas as outras faixas etárias (23,1%), com p<0,05. Em contrapartida, indivíduos maiores de 60 anos representaram o maior número de óbitos dentre a população estudada (28,2%), p>0,05 (Tabelas 6 e 7).


 



 


 



 


DISCUSSÃO


Os dados revelam uma realidade preocupante em relação às internações por queimaduras no estado do Rio de Janeiro durante o período de 2013 a 2023. Com um total de 17.645 internações, destaca-se o fato de que 1297 desses casos resultaram em óbito, evidenciando a gravidade desse problema para a saúde pública do estado. É particularmente alarmante o aumento significativo no número de óbitos em 2021, indicando uma possível crise ou evento específico que demanda investigação. Destaca-se que essa data marca o início da pandemia da COVID-19, cujas medidas de distanciamento social e as restrições de mobilidade impostas à população podem ter levado as pessoas a passarem mais tempo em casa, aumentando a exposição a situações de risco, como acidentes domésticos. Além disso, as mudanças nos comportamentos, como o aumento do uso de álcool em gel e produtos de limpeza inflamáveis, podem ter contribuído para o aumento dos casos de queimaduras6,7.


Embora não existam estudos específicos sobre o aumento de óbitos por queimaduras durante a pandemia da COVID-19, os princípios gerais de saúde pública e segurança sugerem que a pandemia pode ter influenciado indiretamente a incidência e gravidade de acidentes por queimaduras. No entanto, são necessárias mais pesquisas para entender melhor essa relação e desenvolver estratégias de prevenção eficazes.


Nesse recorte histórico, pretos e pardos representam comparativamente tanto o maior número de internações quanto de óbitos por queimaduras. Para compreender melhor as razões por trás das disparidades observadas, é crucial considerar os determinantes sociais da saúde que influenciam as experiências de saúde e doença das populações. No caso das disparidades raciais e étnicas, estudos destacam a influência de fatores como racismo estrutural, acesso desigual à informação e a recursos socioeconômicos, assim como, condições de vida precárias.


No que diz respeito à vida nas periferias, essa está frequentemente associada a uma série de desafios e riscos devido à falta de acesso a recursos básicos como infraestrutura habitacional digna e saneamento básico. Tais moradias são comumente  construídas com materiais precários e, muitas vezes, inflamáveis como madeira e até mesmo papelão. A análise desses determinantes pode ajudar a desenvolver políticas e intervenções mais eficazes para reduzir as desigualdades em saúde8,9.


No que tange ao gênero nas internações e óbitos por queimadura, homens apresentaram tanto maior número de internações quanto de óbitos em comparação com mulheres, em valores absolutos. Nota-se, porém, que houve relevância estatística apenas para o número de internações, mas não para óbitos. A literatura demonstra que homens são mais propensos a sofrerem queimaduras devido a uma combinação de fatores biológicos, autoconfiança, expectativas de gênero incluindo ocupações de alto risco, comportamentos de risco, maior exposição a fatores de risco ambientais e menor atenção à segurança. Esses padrões são observados em diversas áreas, desde o ambiente de trabalho até situações cotidianas,  como endossado por dados da OMS3,10.


A alta incidência de queimaduras em crianças permanece como tópico relevante na saúde pública mundial. A curiosidade natural, a necessidade de exploração do ambiente, a falta de percepção de perigo e a pequena estatura colocam as crianças em maior risco de entrar em contato com fontes de calor, como fogões e aparelhos elétricos.


Também é possível destacar a falta de vigilância adequada de seus tutores, muitas vezes, as crianças são deixadas na tutela de seus irmãos mais velhos, que ainda são menores de idade, para que seus pais possam trabalhar e trazer o sustento. Dentro desse fator socioeconômico, famílias de baixa renda podem viver em condições nas quais os riscos de queimaduras são maiores, como cozinhas improvisadas e aquecedores inseguros. Ademais, a maior proporção de superfície corporal em relação ao peso torna as queimaduras mais graves em crianças. Tais fatores, associados a fatores ambientais e cuidado inadequados contribuem para o aumento do risco11,12


Dentro dessa perspectiva e em consonância com outros estudos, embora as crianças tenham uma alta incidência de queimaduras, os idosos enfrentam taxas de mortalidade mais elevadas devido à gravidade das lesões e à presença de condições médicas subjacentes. Fatores como diminuição das funções fisiológicas, maior tempo de internação e maior prevalência de comorbidades contribuem para essa tendência, destacando a importância de medidas preventivas e intervenções específicas para proteger os idosos contra os efeitos adversos das queimaduras13,14.


CONCLUSÕES


A análise do perfil epidemiológico das internações e óbitos por queimadura no estado do Rio de Janeiro no período de 2013-2023 demonstrou que esta nosologia ainda ocupa espaço relevante na saúde pública do estado. Nesse estudo, homens internaram mais do que mulheres, assim como pardos e pretos. Outrossim, a despeito de internarem mais, crianças morreram menos que idosos. Destaca-se, portanto, a premente necessidade de abordar as pautas de internações e óbitos por queimaduras. Porém, é essencial que, ao fazê-lo, as políticas de saúde não considerem apenas os aspectos clínicos da doença, mas também os determinantes sociais que influenciam as experiências de saúde das populações. Intervenções direcionadas, baseadas em evidências e sensíveis às necessidades específicas de diferentes grupos raciais, étnicos, de gênero e etários são necessárias para dirimir as disparidades e melhorar os resultados de saúde para todos.


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Recebido em 15 de Outubro de 2024.
Aceito em 18 de Março de 2025.

Local de realização do trabalho: Hospital Municipal Souza Aguiar, Centro de Tratamento de Queimados, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.


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