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Artigo Original

Estudo clínico epidemiológico de vítimas de queimaduras elétricas nos últimos 10 anos

Clinical epidemiological study of victims of electrical burns in the last 10 years

Cíntia Mara de Carvalho1; Gladstone Eustáquio de Lima Faria1; Dimas André Milcheski2; David de Souza Gomez2; Marcus Castro Ferreira3

RESUMO

OBJETIVO: Descrever a epidemiologia das vítimas de queimadura elétrica tratadas na Unidade de Queimaduras do HC-FMUSP nos 10 últimos anos, bem como descrever suas complicaçoes, tratamento, tempo de internaçao hospitalar e taxa de mortalidade.
MÉTODO: Estudo retrospectivo que incluiu revisao de prontuários médicos de vítimas de queimaduras elétricas internadas na Unidade de Queimaduras do HC-FMUSP entre novembro de 2001 e outubro de 2011.
RESULTADOS: O trauma elétrico foi responsável por 4,5% de todas as internaçoes, sendo sua maioria de alta voltagem (56,7%). A idade média das vítimas foi de 30,4 anos e 89,5% delas eram do sexo masculino. Complicaçoes como síndrome compartimental, amputaçoes, rabdomiólise e lesao renal aguda foram frequentes, especialmente entre as vítimas de trauma elétrico de alta voltagem. Desbridamentos foram realizados em 72,3% dos pacientes, enxertos de pele em 58,2% e retalhos em 24,6%. A taxa de mortalidade foi de 8,2%.
CONCLUSOES: Queimaduras elétricas, em especial as de alta voltagem, apresentam taxas elevadas de morbidade e mortalidade e devem ser tratadas em centros de referência, os quais dispoem de recursos multidisciplinares para o adequado tratamento, prevençao de sequelas e reabilitaçao.

Palavras-chave: Queimaduras elétricas. Epidemiologia. Tratamento. Unidades de queimados.

ABSTRACT

PURPOSE: To describe the epidemiology as well as the treatment, complications, period of hospitalization and mortality rate of electrical trauma victims treated in the last ten years at the Burn Unit of HC-FMUSP.
METHODS: Retrospective study that includes medical records of patients with electrical injuries admitted to the Burn Unit of HC-FMUSP, from November 2001 to October 2011.
RESULTS: Electrical trauma was responsible for 4.5% of the admissions to the Burn Unit. Most of the patients (56.7%) suffered high voltage electrical trauma. The average age of the victims was 30.4 years and 89.5% of them were males. Complications, such as compartmental syndrome, amputation, rhabdomyolysis and acute kidney injury were frequent, mostly among high voltage electrical injuries victims. 72.3% of patients underwent debridement, 58.2% skin grafting, and 24.6% were submitted to flaps. Mortality rate was 8.2%.
CONCLUSIONS: High voltage electrical trauma presents high rates of morbidity and mortality. It should be treated at burn reference centers, which have multidisciplinary resources for the proper treatment, preventing sequels and rehabilitation.

Keywords: Burns, eletric. Epidemiology. Therapeutics. Burn units.

As queimaduras elétricas permanecem como grande problema de saúde em nossa sociedade, causa de importante impacto tanto de saúde pública, quanto socioeconômico. Os gastos com seu tratamento na fase aguda sao grandes e um número nao desprezível de casos evolui com sequelas, onerando também a Previdência Social.

Os acidentes elétricos sao classificados como por alta voltagem (>1000 V), por baixa voltagem (<1000 V) e os flash burns, nos quais a corrente elétrica nao penetra efetivamente no corpo e as lesoes sao causadas pelas faíscas elétricas.

Tipicamente, no local de penetraçao da corrente elétrica (porta de entrada) há uma destruiçao cutânea pequena, porém, com danos importantes nas estruturas profundas, com graus variados de necrose1. Esses acidentes, frequentemente, requerem longos períodos de internaçao, com múltiplas abordagens cirúrgicas.

Grande parcela dos pacientes acidenta-se durante o trabalho2, implicando afastamento temporário ou definitivo de suas atividades laborais.

O objetivo do presente estudo é descrever a casuística da Unidade de Queimaduras do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo (HC-FMUSP) no tratamento de traumas elétricos em dez anos consecutivos, bem como descrever suas complicaçoes, tratamento, tempo de internaçao hospitalar e taxa de mortalidade.


MÉTODO

Foi realizado estudo retrospectivo, por meio de revisao de prontuários médicos de vítimas de acidentes elétricos admitidas, no período de novembro de 2001 a outubro de 2011, na Unidade de Queimaduras do HC-FMUSP. O HC-FMUSP é responsável pela cobertura das regioes sudoeste e centro-oeste da cidade de Sao Paulo e é referência estadual em tratamento de queimaduras.

Os pacientes admitidos para reconstruçoes tardias ou que nao finalizaram o tratamento foram excluídos do trabalho. O trabalho foi aprovado pela Comissao de Ética do HCFMUSP.

As variáveis analisadas foram gênero, idade, profissao, voltagem, profundidade das queimaduras, superfície corporal queimada, tempo de internaçao hospitalar e em cuidados intensivos, tratamento cirúrgico utilizado e complicaçoes agudas, como síndrome compartimental, rabdomiólise, injúria renal aguda e óbito.

A presença de rabdomiólise foi definida como creatino fosfoquinase > 10.000 U/L e a definiçao de lesao renal aguda foi estabelecida segundo os critérios de AKIN3.


RESULTADOS

Nos 10 últimos anos, 8.402 vítimas de queimaduras foram atendidas na Unidade de Queimaduras do HC-FMUSP. Dessas, 2985 foram encaminhadas para internaçao hospitalar (2.277 em enfermaria e 708 em UTI). As queimaduras elétricas foram responsáveis por 4,5% do total de internaçoes (134 casos).

Cento e vinte (89,5%) pacientes eram do sexo masculino. A idade média das vítimas de trauma elétrico foi 30,4 anos, variando de 9 meses a 65 anos (Figura 1). Trinta pacientes tinham menos de 18 anos. Entre os menores de 18 anos, observou-se uma distribuiçao bimodal, na qual os traumas de baixa voltagem foram predominantes em crianças pré-escolares (média de 3,9 anos), enquanto os de alta voltagem ocorreram em pré-adolescentes (média de 12,2 anos), que brincam próximos a fios de alta tensao.


Figura 1 - Distribuiçao do trauma elétrico segundo faixa etária, na Unidade de Queimaduras do HCFMUSP, no período de novembro de 2001 a outubro de 2011.



O trauma elétrico teve natureza acidental em todos os casos, exceto em um em que houve tentativa de autoextermínio. O acidente teve natureza declaradamente ocupacional em 44% dos casos (59 pacientes).

Setenta e seis (56,7%) pacientes sofreram trauma elétrico de alta voltagem, 31 (23,1%) de baixa voltagem e 27 (20,1%) sofreram flash burn. Nao foram constatados casos de queimaduras por raio ou de queimaduras por armas elétricas, visto que sao atípicas em nosso meio.

O ferimento de entrada nos traumas elétricos de alta e baixa voltagem envolveu os membros superiores, em especial as maos, em 81,3% dos casos.

Oitenta e oito (65,6%) pacientes apresentaram queimaduras de 3º grau (86,8% entre as vítimas de queimaduras elétricas de alta voltagem). A superfície corpórea queimada (SCQ) média foi de 12,2% (15,4% entre as vítimas de queimaduras elétricas de alta voltagem e 2,3% entre as de baixa voltagem) (Figura 2).


Figura 2 - Superfície Corpórea Queimada (SCQ) média e porcentagem de pacientes com queimaduras de terceiro grau em vítimas de trauma elétrico de alta e baixa voltagem internadas na Unidade de Queimaduras do HCFMUSP, no período de novembro de 2001 a outubro de 2011.



A duraçao da internaçao hospitalar foi, em média, de 30 dias (35,6 dias entre as vítimas de trauma elétrico de alta voltagem e 26 dias entre as de baixa voltagem). Oitenta e três (61,9%) pacientes permaneceram em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) por, no mínimo, 24 horas, com duraçao média de 14,8 dias (17,5 dias para as vítimas de trauma elétrico de alta voltagem e 5,3 dias para as de baixa voltagem) (Figura 3).


Figura 3 - Duraçao (em dias) da internaçao hospitalar e em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de pacientes com trauma elétrico de alta e baixa voltagem internados no HCFMUSP, no período de novembro de 2001 a outubro de 2011.



Na Figura 4, observa-se que as escarotomias foram necessárias em 16,4% dos pacientes (25% entre os pacientes com trauma elétrico de alta voltagem e 3,2% entre os de baixa voltagem), 11,1% necessitaram de fasciotomia associada (17,1% no trauma elétrico de alta voltagem e 3,2% no de baixa voltagem). Rabdmiólise ocorreu em 19,4% dos casos (26 pacientes), sendo que 25 desses 26 pacientes eram vítimas de trauma elétrico de alta voltagem.


Figura 4 - Frequência de complicaçoes nos pacientes com trauma elétrico de alta e baixa voltagem internados na Unidade de Queimaduras do HCFMUSP, no período de novembro de 2001 a outubro de 2011.



Lesao renal aguda ocorreu em 20,1% dos pacientes (27,6% entre as vítimas de queimadura de alta voltagem, e 22% entre as vítimas de flash burn). Vinte e um dos 27 casos de lesao renal ocorreram no grupo com trauma elétrico de alta voltagem.

A amputaçao foi necessária em 22 (16,4%) pacientes, sendo 19 pertencentes ao grupo com trauma de alta voltagem e três ao grupo com trauma de baixa voltagem.

Procedimentos cirúrgicos foram necessários no tratamento de 99 (73,8%) vítimas de trauma elétrico, principalmente entre as de alta voltagem (Figura 5). Noventa e sete dos 134 (72,3%) pacientes foram submetidos a desbridamentos; 78 (58,2%), a enxertia de pele, e, em 33 (24,6%) pacientes, foi indicada a confecçao de retalhos.


Figura 5 - Porcentagem de pacientes com trauma elétrico de alta voltagem, baixa voltagem e flash burn que foram submetidos a procedimentos cirúrgicos.



Em relaçao apenas ao trauma elétrico de alta voltagem, o uso de retalhos foi indicado em 34,2% dos pacientes (n=26), sendo que o retalho livre (microcirúrgico) foi utilizado em 42,3% desses (n=11).

Dez (7,5%) pacientes apresentaram bridas e/ou restriçao de movimento na evoluçao do seguimento ambulatorial, necessitando de outros procedimentos cirúrgicos para correçao.

A taxa de mortalidade geral foi de 8,2% (n=11), sendo que a ocorrência de óbito foi quase exclusiva do grupo com trauma elétrico de alta voltagem (n=10). Causas infecciosas foram responsáveis por 72,7% (8 pacientes) dos óbitos.


DISCUSSAO

Os traumas elétricos foram responsáveis por 4,5% das internaçoes em Unidades de Queimaduras, estatística semelhante à de publicaçoes anteriores3-6. Tais modalidades de trauma sao quase sempre acidentais e passíveis de prevençao. Elas afetam, principalmente, homens em idade adulta (estando relacionadas às atividades laborais) e pacientes pediátricos.

Nos pacientes pediátricos, os traumas de baixa voltagem foram predominantes em crianças pequenas (média de 3,9 anos), que se acidentam com tomadas e fios desencapados, ao passo que os de alta voltagem ocorreram em crianças mais velhas e em adolescentes (média de 12,2 anos), que brincam perto de fios de alta tensao. Essa distribuiçao bimodal é condizente com outras publicaçoes7,8. Assim, apesar da melhoria das condiçoes de trabalho, observou-se a manutençao da elevada incidência de traumas elétricos2.

A maior frequência encontrada de traumas elétricos de alta voltagem pode ser explicada pelo fato de o trabalho ter sido realizado em hospital terciário, referência em cuidados aos queimados, recebendo, portanto, casos de maior gravidade. Esses pacientes necessitam de procedimentos cirúrgicos de maior complexidade, apresentam maior período de internaçao hospitalar e em UTI, e neles incidem com mais frequência complicaçoes como rabdomiólise, injúria renal, síndrome compartimental e amputaçoes.

A alta incidência de lesao renal aguda observada (20,1% do total) pode ser atribuída à utilizaçao dos critérios de AKIN3, os quais sao extremamente sensíveis na detecçao de injúrias renais, considerando pequenas variaçoes de creatinina.

Os pontos de contato com o meio externo, majoritariamente as maos, apresentam danos importantes em estruturas profundas, requerendo uso de retalhos para cobertura dos defeitos, frequentemente microcirúrgicos9.

As complicaçoes sépticas sao a principal causa de óbito entre os queimados10. O longo período de internaçao hospitalar e de procedimentos invasivos, a imunossupressao associada e a superfície corpórea desprotegida contribuem para o seu desenvolvimento.


CONCLUSAO

Apesar de pouco frequentes, os traumas elétricos, em especial os de alta voltagem, apresentam taxas elevadas de morbidade e mortalidade e possuem grande impacto econômico, devendo ser tratados em centros de referência em queimaduras, os quais dispoem de recursos multidisciplinares para o adequado tratamento, prevençao de sequelas e reabilitaçao, com reduçao dos impactos socioeconômicos.


REFERENCIAS

1. Ferreiro I, Meléndez J, Regalado J, Béjar FJ, Gabilondo FJ. Factors influencing the sequelae of high tension electrical injuries. Burns. 1998;24(7):649-53.

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3. Baxter CR, Waeckerle JF. Emergency treatment of burn injury. Ann Emerg Med. 1988;17(12):1305-15.

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8. Jain S, Bandi V. Electrical and lightning injuries. Crit Care Clin. 1999;15(2):319-31.

9. Milcheski DA, Busnardo F, Ferreira MC. Reconstruçao microcirúrgica em queimaduras. Rev Bras Queimaduras. 2010;9(3):100-4.

10. Gupta AK, Uppal S, Garg R, Gupta A, Pal R. A clinico-epidemiologic study of 892 patients with burn injuries at a tertiary care hospital in Punjab, India. J Emerg Trauma Shock. 2011;4(1):7-11.










1. Médico residente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo (HC-FMUSP), Sao Paulo, SP, Brasil
2. Médico Assistente da Divisao de Cirurgia Plástica do HC-FMUSP, Sao Paulo, SP, Brasil
3. Professor Titular da Disciplina de Cirurgia Plástica da FMUSP, Sao Paulo, SP, Brasil

Correspondência:
Cíntia Mara de Carvalho
Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - Cerqueira César
Sao Paulo, SP, Brasil - CEP: 05403-000
E-mail: cintiapp@hotmail.com

Artigo recebido: 15/9/2012
Artigo aceito: 21/10/2012

Trabalho realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo (FMUSP), Sao Paulo, SP, Brasil.

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