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Acesso aberto Revisado por pares
Editorial

Zeitgeist – o espírito do tempo

Zeitgeist - the spirit of time

Luiz Philipe Molina Vana

Estamos iniciando uma nova gestao, um ciclo que busca dar continuidade às inovaçoes e valorizaçao dos membros e parceiros da Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ). Da mesma maneira, daremos continuidade ao trabalho de tornar a Revista Brasileira de Queimaduras (RBQ) referência científica na área do tratamento das queimaduras, por meio de melhorias do conteúdo e crescimento do número de artigos nacionais e internacionais, garantindo, assim, um maior alcance e maior qualidade. Hoje, a RBQ ocupa lugar de destaque, com maior impacto que as revistas chinesa e indiana.

Com o intuito de apoiar os interessados em publicar na RBQ, neste ano realizaremos na X Jornada Brasileira de Queimaduras, um workshop voltado a discutir pesquisa em queimaduras e como publicar na RBQ. Pretendemos dirimir dúvidas dos iniciados e introduzir aqueles que desejam adentrar este mundo.

Estamos iniciando um período que para muitos é o futuro, afinal, o futuro de muitos chegou! Por isso, é tempo de discutir, de compreender, de revisarmos o que passou e compreender o que está por vir. Está na hora de nos adaptarmos aos novos paradigmas exigidos por mudanças, às mudanças da chamada geraçao mobile, sim já nao estamos mais na geraçao "Y". Esta será a tônica deste período de 2 anos que se iniciou. Planejamos um novo aplicativo da SBQ para nos mantermos em sintonia com esta nova era. Teremos uma seçao de sócio com informaçoes especializadas e uma de nao sócio, aberta a todos com informaçoes genéricas sobre as queimaduras, como as unidades de tratamento das queimaduras, nossos parceiros e como contatá-los.

Apesar de estarmos vivenciando o futuro, ainda estamos em muitos aspectos no passado. Uma ironia que provavelmente é decorrente das políticas públicas adotadas por nossos governantes em relaçao às queimaduras. A consequência é clara, uma grande defasagem de nossos tratamentos das vítimas de queimaduras em relaçao aos países mais desenvolvidos. Um exemplo triste que podemos dar é a área queimada necessária para morrer 50% dos pacientes da faixa etária até 14 anos; na década de 90, em Galveston1, era necessário queimar mais de 90%. Nao preciso mencionar que nao chegamos perto destes resultados. Mas, nosso problema nao se restringe à questao mortalidade; tao grave quanto, é a prevençao e a morbidade.

Quando olhamos o perfil de nossos pacientes queimados, com as poucas estatísticas que temos, sabemos que cerca de 75% acontece em casa e 40% até os 10 anos de idade. Isto significa que sao queimaduras domésticas em nossas crianças, basicamente na cozinha e, portanto, evitáveis. Como mudar este cenário sem uma política pública de prevençao? Nao temos condiçoes de realizar campanhas extensas de prevençao, mas temos como realizar açoes que certamente ajudarao. Assim, pretendemos realizar uma campanha em junho de 2017 com a distribuiçao de 100 mil gibis de prevençao da Turma da Mônica, além de um website exclusivo sobre prevençao e um aplicativo direcionado ao público leigo sobre prevençao e o que fazer na urgência. Também estamos lutando junto ao Ministério da Saúde para viabilizar campanhas nacionais de prevençao de queimaduras.

Vemos, em nosso dia-a-dia uma incidência muito elevada de sequelas, sequelas evitáveis, pois sao as que nos interessam. E por quê? Certamente tem a ver como tratamos nossos pacientes na chamada fase aguda. Nao porque nao tenhamos conhecimento, mas porque nossas condiçoes de trabalho talvez nao nos permitam exercer o melhor de nossa Medicina, assim como nao nos encoraje a fazê-lo.

Temos cerca de 45 unidades de tratamento de queimaduras (UTQ) funcionando no Brasil; cerca de um quarto trata as suas próprias sequelas. É fácil compreender algumas das razoes que levam a estes maus resultados, mas é difícil corrigir. Como abordar de maneira mais intensa o paciente se nao temos muitas vezes centro cirúrgico disponível para tantos pacientes, se temos falta de equipamentos, algumas UTQs nao têm dermátomo elétrico, se temos falta de materiais, de curativos modernos, e que hoje sabemos que nos auxiliam de maneira mais eficaz, se nao temos equipe para nos apoiar. Quantas UTQs têm em seu quadro terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, psicóloga continuamente? Quantas UTQ têm a sua disposiçao uma equipe multidisciplinar completa? Quanto pacientes têm malha compressiva a sua disposiçao? E tratamentos mais recentes como laser? Infelizmente, nao temos este número, mas certamente sao poucas. Recursos que todos nós desejamos, mas poucos dispoem em nosso dia-a-dia. Acabamos sendo obrigados a usar a famosa criatividade do povo brasileiro para contornar tantas carências. Obviamente, pagamos um preço elevado por isso.

A alta incidência das sequelas de queimaduras está relacionada diretamente com a cicatrizaçao e a cicatrizaçao está relacionada com o tratamento da fase aguda. Quanto mais conservador este tratamento, quanto mais lento o processo de cura, maior a incidência de cicatrizes hipertróficas. Após 20 dias para curar, temos uma chance maior que 80% de se formarem cicatrizes hipertróficas2-7.

O custo é alto, sao milhares de pacientes com perda da capacidade laboral, muitas vezes enclausurados em si próprios, que perdem a dignidade e a qualidade de vida.

Nao estaria na hora de nossos governantes e gestores do sistema de saúde complementar avaliar as condiçoes de tratamento destes pacientes e perceber que a relaçao custo-efetividade traria nao só menor custo financeiro para o Estado e convênios, como melhor qualidade de vida? Costumo dizer, nao basta salvar vidas, temos que salvá-la e dar dignidade aos nossos pacientes. Talvez este seja um dos maiores desafios dos próximos anos.

Triste, pois somos o eterno país do futuro.


REFERENCIAS

1. Muller MJ Herndon DN. The challenge of burns. Lancet. 1994;343(8891):216-20.

2. Deitch EA, Wheelahan TM, Rose MP, Clothier J, Cotter J. Hypertophic burn scars: analysis of variables. J Trauma 1983;23(10):895-8.

3. Herndon DN, ed. Total Burn Care. 3rd ed. Philadelphia: Saunders/Elsevier; 2007.

4. Pietsc JB, Netscher DT, Nagaraj HS, Groff DB. Early excision of major burns in children: effect on morbidity and mortality. J Pediatr Surg. 1985; 20(6):754-7.

5. Herndon DN, Barrow RE, Rutan RL, Rutan TC, Desai MH, Abston S. A comparative of conservative versus early excision. Therapies in severely burned patients. Ann Surg. 1989; 209(5):547-53.

6. Deitch EA. A policy of early excision and grafting in elderly burn patients shortens the hospital stay and improves survival. Burns Incl Therm Inj. 1985;12(2):109-14.

7. Engrav LH, Heimbach DM, Reus JL, Harnar TJ, Marvin JA. Early excision and grafting vs. nonoperative treatment of burns of indeterminant depth: a randomized prospective study. J Trauma. 1983;23(11):1001-4.

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