2275
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Relato de Caso

Tratamento de lesão extensa fasciocutânea em membros inferiores causada por picada de aranha Loxosceles: relato de caso

Extensive fasciocutaneous lesion treatment in lower limbs caused by brown spider (Loxosceles) bite: a case report

Júlio A. Soncini1; Sergio A. Barbosa2; David S. Gómez3; Marcus de Castro Ferreira4

RESUMO

INTRODUÇAO: O loxoscelismo, decorrente da picada de aranha do gênero Loxosceles, pode apresentar duas formas distintas: cutânea, com sintomas locais, e cutâneo-visceral, rara no Brasil, mas com complicaçoes sistêmicas, como as descritas no presente caso.
RELATO DO CASO: Paciente picado por aranha Loxosceles no ombro, com importante acometimento sistêmico: sepse, insuficiência renal, insuficiência hepática, coagulaçao intravascular disseminada e fasceíte necrotizante em membros inferiores. Paciente foi submetido a ressecçao extensa de tecidos necróticos, seguida por enxertia de pele. Apesar das complicaçoes apresentadas, o paciente apresentou boa evoluçao, tanto do ponto de vista sistêmico quanto local.
CONCLUSAO: A forma cutâneo-visceral do loxoscelismo, com acometimento sistêmico, é rara, afetando aproximadamente 3% das vítimas. Geralmente, a forma local predomina, com formaçao de vesículas e dor progressiva nas primeiras 36 horas. Forma-se, a seguir, a placa marmórea, que evolui para necrose seca e úlcera prolongada de difícil cicatrizaçao. No presente caso, além das complicaçoes sistêmicas, houve, também, lesoes cutâneas distantes do local original da picada, com necrose cutânea extensa em membros inferiores, necessitando ampla ressecçao e enxertia de pele para sua reparaçao.

Palavras-chave: Aracnidismo. Venenos de aranha. Fasciite necrosante. Coagulação intravascular disseminada.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Loxoscelism, produced by brown spider bites, appears in two distinct forms: cutaneous with only local symptoms, and viscero-cutaneous, rare in Brazil, but presenting systemic complications as described in this case.
CASE REPORT: Patient was bitten by a brown spider on the shoulder, and had an extensive systemic compromise as sepsis, renal and hepatic insufficiencies, disseminated intravascular coagulation and inferior limbs necrotizing fasceitis. Treatment consisted by necrotic tissues resection, followed by skin grafting. Outcome was locally and systemically good.
CONCLUSION: The viscero-cutaneous form of loxoscelism, with systemic compromise is rare in Brazil, affecting about 3% of the victims. Local forms are the rule, with blister formation and progressive pain along the first 36 hours, followed by dry necrosis and prolonged ulceration with difficult healing. In the present case, beyond systemic complications there were cutaneous lesions distant from the bite site, producing extensive inferior limbs cutaneous necrosis, which required wide debridement and split-thickness skin grafting for closure.

Keywords: Arachnidism. Spider venoms. Fasciitis, necrotizing. Disseminated intravascular coagulation.

Os aracnídeos do gênero Loxosceles (Figura 1) sao frequentemente encontrados em moradias da zona rural brasileira. Os pacientes afetados pela picada podem apresentar duas formas clínicas evolutivas do loxoscelismo: cutânea e cutâneo-visceral. Em nosso meio, a forma cutânea é predominante, acometendo até 98% dos casos, com o quadro clínico apresentando evoluçao lenta e progressiva. Na grande maioria dos casos, os sintomas sao localizados, como dor no local da picada e vesículas, com o surgimento posterior de áreas hemorrágicas associadas a alteraçoes isquêmicas. Quando surgem sintomas sistêmicos, em geral, sao constituídos por febre e exantema, podendo chegar a hemólise intravascular e coagulaçao intravascular disseminada (CIVD).


Figura 1 - Aranha marrom, Loxosceles laeta.



O caso relatado neste artigo enquadra-se na forma rara, cutâneovisceral, tendo apresentado graves complicaçoes sistêmicas, além de perda cutânea extensa distante do local da inoculaçao do veneno. Por se tratar de caso raro, relatamos o mesmo minuciosamente, a fim de auxiliar no diagnóstico e no tratamento de casos semelhantes.


RELATO DO CASO

Paciente do masculino, 24 anos, pardo, encaminhado ao pronto-socorro cirúrgico em caráter de emergência, com quadro convulsivo e ciatalgia, além de lesao cutânea ulcerada em ombro esquerdo, com sangramento na regiao central da úlcera e intensa vasculite periférica.

Segundo informaçoes colhidas, dez dias antes o paciente havia sido picado por inseto nessa regiao (Figura 2), evoluindo, inicialmente, com processo inflamatório local. Após uma semana, apresentou edema em ambas as coxas, que evoluiu após três dias para equimoses e lesoes bolhosas em toda a extensao dos membros inferiores.


Figura 2 - Local da picada: lesao ulcerada em ombro esquerdo, com sangramento, intensa vasculite e placa marmórea.



Internado na Unidade de Terapia Intensiva, realizaram-se exames que demonstraram leucocitose com desvio à esquerda, ureia de 98 mg/dl, TP de 47 seg e TPP de 2 min e 5 seg, TGO de 405 UK/ml, TGP de 630 UK/ml, bilirrubina total de 1,87 mg%, bilirrubina direta de 1,4 mg% e indireta de 0,47 mg%, gasometria com pH de 7,14, PCO2 de 16, HCO3 de 10,3, CO2 total de 11, BE de 10,9 e saturaçao O2 de 97%.

Após discussao do caso com a equipe médica do Hospital Vital Brasil-Butanta, as evidências conduziram ao diagnóstico de picada por aracnídeo (Loxosceles), associada a insuficiência hepatorrenal e CIVD. Após 72 horas, notou-se melhora do quadro clínico, sucedendo a instituiçao da terapêutica com hiper-hidrataçao, administraçao de diuréticos de alça (furosemida) por quatro dias, heparina intravenosa por seis dias, ceftriaxone e vancomicina por dez dias, plasma, vitamina K e medicaçao sintomática. O soro anti-aracnídico nao foi empregado, pois o paciente apresentou-se tardiamente, no décimo dia, estando, pois, contraindicado, segundo orientaçao da equipe do Hospital Vital Brasil-Butanta.

No 15º dia de internaçao, foi solicitada avaliaçao da equipe de Cirurgia Plástica, em decorrência de extensa necrose cutânea dos membros inferiores consequente à picada, bem como necrose da fáscia profunda e do músculo tensor da fáscia lata. A cultura do material exsudativo e necrótico demonstrou a presença de Staphilococcus aureus, optando-se por manter os antibióticos ceftriaxone e vancomicina por mais 14 dias. Como o paciente mantivesse hipertermia e exsudato abundante nas áreas afetadas, após nova cultura do exsudato da superfície, optou-se pela associaçao com metronidazol por dez dias.

Concomitantemente ao tratamento clínico, realizaram-se desdridamentos cirúrgicos, em cinco sessoes distintas, e curativos oclusivos, empregando-se creme de antimicrobiano tópico, além de tratamento fisioterápico.

Após ressecçao de todo tecido necrótico dos membros inferiores, para obtençao de leito adequado, optou-se pela enxertia homógena de pele de espessura parcial, até a melhora do estado geral do paciente (Figura 3). Após 15 dias, iniciou-se a reparaçao definitiva, empregando-se enxertos de pele autógena de espessura parcial, em quatro atos operatórios sequenciais, utilizando-se como área doadora a regiao dorsal.


Figura 3 - Necrose fasciocutânea em membros inferiores (15 dias após a internaçao).



O paciente apresentou evoluçao favorável, com integraçao total dos enxertos, restauraçao das áreas doadoras e ausência de sequelas funcionais, recebendo alta hospitalar 90 dias após sua internaçao, deambulando sem dificuldades (Figura 4).


Figura 4 - Evoluçao após 90 dias.



DISCUSSAO

A forma cutânea do loxoscelismo predomina em nosso meio, estando presente em cerca de 98% dos casos. Geralmente, os pacientes procuram atendimento médico 12 a 36 horas após a picada. A dor é intensa, aparecendo a seguir vesículas no local da picada, podendo surgir, posteriormente, áreas hemorrágicas, caracterizando a chamada placa marmórea. A dor local intensificase nas primeiras 12 a 36 horas, podendo surgir sintomas gerais, como febre. A lesao cutânea pode evoluir para necrose seca, que dá origem a úlcera de difícil cicatrizaçao, podendo esta manter-se por quatro semanas1-4.

Além do quadro acima descrito, a forma cutâneo-visceral, rara em nosso meio, apresenta manifestaçoes clínicas decorrentes da hemólise intravascular, com anemia aguda, icterícia, hemoglobinúria e CIVD, que, geralmente, iniciam-se nas primeiras 72 horas após o acidente. Nao há relaçao entre a intensidade da atividade hemolítica e o quadro cutâneo no loxoscelismo1.

O tipo de evoluçao no local da picada no caso descrito nao se enquadra no padrao habitual de loxoscelismo, que apresenta, na maioria dos casos, lesao local do tipo necrose seca, mumificada, numular. Raramente ocorre evoluçao com infecçao local secundária, o que pode surgir quando a picada acomete áreas de panículo adiposo espesso, como as nádegas e o abdome.

Os sinais e sintomas apresentados pelo paciente, associados à cuidadosa anamnese, permitiram sugerir acidente loxoscélico, que evoluiu com as complicaçoes descritas.

O quadro bioquímico-enzimático apresentado, com leucocitose com desvio à esquerda, acidose metabólica compensada, insuficiência renal e comprometimento hepático, é sugestivo de sepse. No loxoscelismo cutâneo-visceral, os achados apontam para fenômenos hemolíticos (anemia aguda, bilirrubinemia indireta) e, nos casos complicados com insuficiência renal aguda, alteraçoes dos parâmetros relacionados à disfunçao renal, como ureia e creatinina elevadas4.

Também nos casos da forma cutâneo-visceral, as manifestaçoes decorrentes da hemólise intravascular, como anemia, icterícia e hemoglobinúria1, podem ser acompanhadas de petéquias e equimoses, relacionadas à CIVD. Essa forma é descrita com frequência variável entre 1% e 13% dos casos, dependendo da regiao e da espécie de aranha envolvida, sendo mais comum nos acidentes por Loxosceles laeta.

No caso descrito, houve alteraçao sistêmica extremamente rara, com comprometimento à distância pela CIVD, acarretando necrose cutânea extensa. Os exames laboratoriais comprovaram que esse acidente loxoscélico pode ser classificado como grave, com a principal complicaçao sistêmica nesses casos representada pela insuficiência renal aguda.

Nao existe exame diagnóstico específico. As alteraçoes laboratoriais dependem da forma clínica do envenenamento, podendo ser observadas na forma cutâneo-visceral, como anemia aguda, plaquetopenia, reticulocitose, hiperbilirrubinemia indireta, queda dos níveis séricos da haptoglobina, elevaçao dos níveis séricos de potássio, ureia e creatinina, além de coagulograma alterado, que foi possível se correlacionar com os dados obtidos durante sua internaçao.

Quando se retira material do local da picada para exame anátomo-patológico, observam-se intensa vasculite, obstruçao de pequenos vasos, infiltraçao de polimorfonucleares e agregaçao plaquetária, com desencadeamento de edema, hemorragia e necrose focal. Nos casos de hemólise, há lesao das membranas eritrocitárias, por ativaçao do sistema complemento e, provavelmente, por açao direta do veneno, nao sendo afastada a interferência de fatores genéticos do paciente (deficiência de G-6-P-D).

A indicaçao do antiveneno é controversa na literatura1. Dados experimentais revelaram que a eficácia da soroterapia é reduzida após 36 horas da inoculaçao do veneno.

Outras medicaçoes empregadas constam de corticosteroide, Dapsone (DDS), analgésico e antibióticos sistêmicos.

A limpeza local, conforme realizada, constitui processo bem estabelecido, e a utilizaçao de homoenxertos melhorou as condiçoes locais e gerais, permitindo recuperaçao mais rápida do paciente debilitado.

Na maioria dos casos, o prognóstico é bom. Ocorrendo hemólise intravascular, esta pode acarretar quadros graves, inclusive os raros óbitos.

Em que pese a gravidade do caso e o longo período de internaçao, houve evoluçao bastante satisfatória, sem sequelas funcionais.


AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao Dr. Joao Luiz Costa Cardoso e à Dra. Celia Maria Sant Ana Malaque, do Hospital Vital Brasil, de Sao Paulo, SP, pelo inestimável apoio clínico e auxílio no diagnóstico no presente caso.


REFERENCIAS

1. Brasil. Ministério da Saúde. Manual de diagnóstico e tratamento de acidentes por animais peçonhentos. Brasília:Ministério da Saúde, Fundaçao Nacional de Saúde;2001. p.53.

2. Brasil. Ministério da Saúde. Doenças infecciosas e parasitárias: guia de bolso. 8ª ed. Brasília:Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica;2010.

3. Appel MH, Bertoni da Silveira R, Gremski W, Veiga SS. Insights into brown spider and loxoscelism. Invertebrate Surviv J. 2005;2(2):152-8.

4. Gendron BP. Loxosceles reclusa envenomation. Am J Emerg Med. 1990;8(1):51-4.










1. Cirurgiao plástico, diretor científico da Sociedade Brasileira de Queimaduras - regional Sao Paulo, Hospital Nipo Brasileiro, Sao Paulo, SP, Brasil.
2. Cirurgiao plástico, membro da SBCP.
3. Cirurgiao plástico da Divisao de Cirurgia Plástica e Queimaduras do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo (HCFMUSP), Sao Paulo, SP, Brasil.
4. Professor Titular da Disciplina de Cirurgia Plástica da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo, SP, Brasil.

Correspondência:
Júlio A. Soncini
Rua Josephina Mandotti, 340 - cj 54 - Jardim Maia
Guarulhos, SP, Brasil - CEP 07115-080
E-mail jasoncini@uol.com.br

Artigo recebido: 21/1/2012
Artigo aceito: 28/2/2012

Trabalho realizado no Hospital Nipo Brasileiro-Beneficência Nipo Brasileira de Sao Paulo, Sao Paulo, SP, Brasil.

© 2024 Todos os Direitos Reservados